Um Debate sobre Determinismo Divino e Delegação Total
Deveria saber: a explicação dada por Deus, ao afirmar que o desvio recai unicamente sobre os perversos, esclarece como se dá a influência divina nas ações humanas e em suas consequências — que é, justamente, a questão central no debate teológico entre o determinismo (jabr) e o delegação total (tafwīḍ).
Explicando: Deus afirma em diversos versículos:
– "A Deus pertence tudo o que há nos céus e na terra" (Al-Baqarah, 2:284);
– "A Ele pertence o domínio dos céus e da terra" (Al-Ḥadīd, 57:5);
– "A Ele pertence o reino, e a Ele pertence o louvor" (At-Taghābun, 64:1).
Nesses e em outros versículos semelhantes, estabelece-se que Deus é o soberano absoluto do universo. Ou seja, sua propriedade sobre as coisas não é parcial ou condicionada — como é o caso da propriedade humana. Um indivíduo pode ser dono de um escravo ou de um bem, mas essa posse é limitada pelas normas da razão e da justiça: por exemplo, ele pode usar um animal para transportar cargas, mas não seria considerado legítimo, segundo os padrões morais, matá-lo de fome ou queimá-lo.
A posse humana é, portanto, relativa e restrita: autoriza certos atos, mas não todos os que são possíveis em relação ao bem possuído.
Diferente disso é o domínio de Deus sobre a criação: não há outro senhor além Dele, e as criaturas não têm qualquer capacidade autônoma de beneficiar ou prejudicar a si mesmas, nem de dar vida, causar morte ou provocar ressurreição. Todo e qualquer ato que recaia sobre elas pertence exclusivamente a Deus. Assim, qualquer disposição que Ele realize em sua criação é, por definição, justa e legítima, não sendo passível de censura ou reprovação.
Reprovação moral ocorre apenas quando alguém age sobre aquilo que não lhe pertence de direito e essa é a limitação do domínio humano. Mas Deus, como proprietário absoluto, está livre dessas restrições: toda ação Sua é exercida sobre o que é propriedade Sua, e portanto, não carrega em si nenhuma feiura moral ou injustiça.
Essa realidade é confirmada por diversos versículos que negam a outros qualquer tipo de ingerência no domínio divino, exceto por Sua permissão ou vontade. Por exemplo:
– "Quem poderá interceder junto a Ele, senão com Sua permissão?" (Al-Baqarah, 2:255);
– "Nenhum intercessor haverá, senão após Sua permissão" (Yūnus, 10:3);
– "Se Deus quisesse, guiaria toda a humanidade" (Ar-Ra‘d, 13:33);
– "Ele desencaminha quem quer, e guia quem quer" (An-Naḥl, 16:93);
– "Não quereis nada, exceto se Deus quiser" (Al-Insān, 76:30);
– "Ele não será interrogado sobre o que faz, mas eles é que serão interrogados" (Al-Anbiyā’, 21:23).
Portanto, Deus é o único agente e soberano em Seu domínio, e nenhum outro possui autoridade ou ingerência a não ser por Sua vontade e permissão. Essa é a exigência fundamental de Sua Senioridade (Robubiah).
Em outro lado, vemos, então, que Deus, exaltado seja, assumiu para Si a posição de legislador, procedendo nisso de modo semelhante à prática dos homens racionais nas sociedades humanas, os quais valorizam o que é bom, louvam e agradecem por isso, e reprovam o que é mau, censurando-o. Isso se evidencia nas palavras do Altíssimo: “Se manifestardes as esmolas, é excelente” (Al-Baqarah, 2:271), e também: “Que péssima designação: perversidade” (Al-Hujurāt, 49:11).
Deus afirmou que Suas legislações são fundamentadas na consideração dos interesses e prejuízos humanos, sendo pautadas pelo que melhor corrige as deficiências do ser humano. Disse, por exemplo: “Quando vos chama para aquilo que vos dá vida” (Al-Anfāl, 8:24), e: “Isso é melhor para vós, se o soubésseis” (As-Saff, 61:11), bem como: “Por certo, Deus ordena a justiça e a benevolência (...) e proíbe a obscenidade, o reprovável e a transgressão” (An-Naḥl, 16:90), e ainda: “Deus jamais ordena a obscenidade” (Al-A’rāf, 7:28). Há numerosas passagens semelhantes.
Essas expressões constituem uma validação da forma de raciocínio dos homens sensatos na sociedade, pois os conceitos de bem e mal, benefício e dano, ordem e proibição, recompensa e punição, louvor e censura, entre outros, são reconhecidos entre os racionais e sustentam os juízos gerais da razão. Do mesmo modo, encontram-se subjacentes às normas jurídicas reveladas por Deus aos Seus servos.
Entre os princípios dos homens racionais está o de que suas ações devem possuir finalidades e benefícios compreensíveis, inclusive as ações legislativas, como a instituição de normas, leis e sistemas de recompensa, em que o bem é recompensado com o bem, e o mal com o mal (punição). Tudo isso é fundamentado em propósitos justos e construtivos.
Portanto, se uma norma ou proibição não trouxer, em determinado contexto, um benefício social compatível, os sensatos não a implementarão. Toda recompensa deve estar em consonância com a natureza da ação original — em bondade ou maldade — e proporcional à sua qualidade e intensidade.
Entre seus juízos também está o de que toda ordem ou proibição, assim como qualquer norma jurídica, se dirige apenas ao agente voluntário, e não ao compelido ou forçado. Da mesma forma, recompensa e punição só se aplicam a atos voluntários, exceto nos casos em que a perda da liberdade tenha sido consequência de uma má escolha anterior, como no caso de quem deliberadamente se colocou em situação de infração forçada; nesse caso, os sensatos não consideram injusta a punição, nem se deixam comover por sua situação obrigatória.
Se Deus, glorificado seja, compelisse seus servos à obediência ou à transgressão, a recompensa do obediente com o paraíso e a punição do transgressor com o fogo seria meramente arbitrária e injusta. A arbitrariedade e a injustiça são consideradas repugnantes pelos sábios.
Ainda, isso exige estabelecer uma preferência sem que exista uma verdadeira razão — uma prática considerada fora do raciocínio lógico, rejeitado pelos sensatos. Além disso, é considerado injusto ou abominável. Como Deus afirmou no Alcorão Sagrado: "Para que nenhuma desculpa tenha as pessoas contra Deus após os mensageiros" (An-Nisa, 165). E também Ele declarou: "Para que, segundo Seu decreto, pereça quem mereça perecer e reviva quem mereça viver." (Al-Anfal, 42).
Assim, quatro princípios fundamentais serão desenvolvidos:
1. A legislação divina não se baseia no determinismo, mas na liberdade de escolha. Os preceitos divinos são estabelecidos considerando o bem-estar integral dos indivíduos - tanto em sua dimensão terrena quanto espiritual. Os indivíduos são responsáveis por suas ações voluntárias, sendo recompensados ou punidos conforme suas escolhas deliberadas.
2. As referências corânicas a conceitos como "extraviar", "iludir" ou "permitir a transgressão" devem ser compreendidas dentro de um contexto de justiça divina. Tais expressões não representam uma ação direta de induzimento ao erro, mas uma consequência natural das escolhas humanas. Como afirma o Altíssimo: 'Com ele desvia muitos e guia muitos - e com ele só desvia os perversos' (Al-Bácara 2:26). E disse: 'Quando se desviaram, Deus desviou seus corações' (As-Saf 61:5). E ainda declarou: 'Assim Deus desvia quem é perdulário e duvidoso' (Al-Gháfer 40:34)..
3. O decreto divino não está diretamente vinculado às ações humanas, tendo, as ações, uma relação imediata com os seus agentes; porém, a sua existência convém de Deus. Este princípio será posteriormente aprofundado nas discussões sobre predestinação e livre arbítrio.
4. A revelação divina transcende tanto o determinismo absoluto quanto a noção de total autonomia humana. Os mandamentos pressupõem capacidade de escolha, sendo incompatíveis com a ideia de um poder que anula completamente a agência individual.
Na hipótese de uma delegação total, além do fato de não fazer sentido a existência de ordens e proibições imperativas referentes a algo sobre o qual o Senhor não possui autoridade, essa concepção só se sustentaria se se admitisse, de algum modo, uma limitação da soberania absoluta de Deus sobre parte daquilo que Lhe pertence.