O Milagre e Sua Natureza
Compreenda que a reivindicação feita pelo Alcorão de ser um sinal miraculoso, expressa por meio do desafio contido neste versículo, desdobra-se, em essência, em duas proposições fundamentais:
- 1) A afirmação da existência do milagre em si — ou seja, a quebra da ordem natural e habitual dos eventos.
- 2) A afirmação de que o Alcorão é um exemplo concreto disso e uma realidade milagrosa.
É evidente que a validação da segunda proposição depende logicamente da veracidade da primeira.
O próprio Alcorão adota esse estilo argumentativo: apresenta-se como um milagre e, ao propor um desafio direto aos seus interlocutores, demonstra simultaneamente a existência do milagre e a sua condição como um exemplo dele.
Resta, portanto, analisar como um milagre se realiza na realidade — isto é, como pode haver no mundo um evento que transcende suas leis habituais sem contrariar os princípios de causalidade.
O Alcorão esclarece essa questão e dissipa possíveis dúvidas a partir de dois eixos fundamentais:
- 1) A afirmação da existência do milagre — da qual o próprio Alcorão é um exemplo, conforme provado por meio do desafio à sua imitação;
- 2) A explicação da essência do milagre e de como ele pode ocorrer dentro da ordem natural, rompendo sua regularidade sem, no entanto, invalidar os fundamentos universais da causalidade.
O Milagre do Alcorão
É indiscutível que o Alcorão se apresenta como milagre em numerosos versículos, tanto mequenses quanto medinenses, todos convergindo na tese de que o Alcorão constitui um sinal extraordinário, proveniente de Deus. Tome-se como exemplo o versículo:
“E se estais em dúvida quanto ao que revelamos ao Nosso servo, trazei, então, uma sura semelhante a esta” — trata-se de um desafio para produzirem uma sura análoga àquela trazida pelo Profeta (S.A.A.S.).
Esse desafio não constitui uma prova direta da profecia em si, mas da condição miraculosa do Alcorão, a qual, por consequência, sustenta a veracidade da missão profética.
A própria formulação do versículo — “quanto ao que revelamos ao Nosso servo” — em vez de “quanto à missão do Nosso servo” — indica que o argumento está centrado no conteúdo revelado (o Alcorão), e não diretamente na pessoa do mensageiro.
Todos os desafios similares presentes no Alcorão seguem essa linha argumentativa: demonstrar que ele é um milagre divino.
Tais versículos variam em termos de abrangência. Um dos mais amplos é a afirmação:
“Dize: Se os humanos e os gênios se reunissem para produzir algo semelhante a este Alcorão, não conseguiriam fazê-lo, mesmo que colaborassem mutuamente” (Al-Isrā’ 17:88).
Este versículo mequense apresenta um desafio universal, dirigido a todos os seres humanos e gênios, com um escopo abrangente que não deixa margem a dúvidas.
[Alguns sábios concentram-se excessivamente na eloquência do Alcorão, negligenciando suas outras dimensões milagrosas. Assim, o exegeta, ao reconhecer esse lado, chama a atenção e às outras dimensões, afirmando:] Se o desafio estivesse limitado apenas à eloquência e ao estilo retórico do Alcorão, sua aplicabilidade se restringiria a um grupo específico — os árabes clássicos, especialmente da era pré-islâmica e da transição para o Islã, antes que a língua árabe passasse por alterações significativas. No entanto, o desafio é dirigido a toda a humanidade e aos gênios.
Além da eloquência, há outras qualidades presentes no Alcorão — como suas verdades metafísicas, seus ensinamentos éticos sublimes, suas normas jurídicas, suas narrativas sobre o invisível, e outros saberes que, no momento da revelação, estavam além do alcance do conhecimento humano. Cada um desses aspectos poderia ser conhecido por alguns indivíduos, mas não por todos — humanos ou gênios.
Por isso, o desafio dirigido simultaneamente aos dois grupos (humanos e gênios) só pode ser compreendido como uma convocação abrangente, que envolve todos os aspectos nos quais pode haver excelência e superioridade, não se limitando a uma única característica.
O Alcorão constitui um sinal miraculoso para o eloquente, em razão de sua retórica e expressividade; para o sábio, por sua sabedoria; para o erudito, por seu conhecimento; para o sociólogo, por sua abordagem das questões sociais; para os legisladores, por sua capacidade normativa; para os políticos, por sua orientação estratégica; para os governantes, por sua concepção de governo; e, para todos os povos, pelo que transcende o alcance humano — como o conhecimento do invisível, a precisão nos juízos, o saber e a clareza da linguagem.
Dessa forma, torna-se evidente que o Alcorão reivindica para si uma natureza miraculosa abrangente, em todas as dimensões. Ele se apresenta como milagre para cada indivíduo dentre os seres humanos e os gênios — seja da elite ou do povo comum, erudito ou ignorante, homem ou mulher, um virtuoso consumado ou alguém de mérito mais modesto — desde que dotado de consciência sensível à linguagem e à razão. O ser humano é naturalmente inclinado a perceber a excelência e a distinguir entre superioridade e deficiência. Cada pessoa, portanto, pode refletir sobre as virtudes que conhece — em si mesma ou em seus semelhantes — e compará-las com os conteúdos que o Alcorão apresenta, de modo a julgar com equidade e honestidade.
Seria possível à capacidade humana inventar, por conta própria, conhecimentos teológicos rigorosamente demonstrados que se equiparem, em verdade e profundidade, àquilo que o Alcorão expõe? Poderia ela formular princípios éticos assentados sobre fundamentos reais, que se igualem ao Alcorão em pureza e excelência? Seria possível que estabelecesse um sistema jurídico completo que abranja todas as ações humanas, sem contradições internas, e que, ao mesmo tempo, preserve o espírito da unicidade divina e o princípio da piedade em cada norma e em seus efeitos, permitindo que a pureza permeie seus fundamentos e desdobramentos?
Seria crível que tal precisão e elaboração extraordinária pudessem emanar de um homem iletrado, criado entre um povo cuja herança civilizatória era marcada, apesar de suas muitas potencialidades humanas, por práticas como viver de pilhagens e saques, enterrar filhas vivas, matar filhos por medo da pobreza, vangloriar-se da ancestralidade, casar-se com as próprias madrastas, exaltar a devassidão, depreciar o saber e ostentar ignorância? Um povo que, mesmo em sua altivez e orgulho tribal, se mostrava submisso a qualquer potência estrangeira que os dominasse — ora sob o domínio do Iêmen, ora da Abissínia, ora dos romanos, ora dos persas?
Tal era a realidade dos árabes da região do Hijaz [Península Arábica] durante o período pré-islâmico.
Seria possível que uma pessoa racional ousaria apresentar um livro, alegando ser ele uma orientação para toda a humanidade, e nele inserir informações sobre o invisível — tanto sobre eventos passados quanto futuros, sobre nações extintas e outras que ainda surgiriam —, distribuídas em múltiplos temas, entre narrativas históricas, profecias e fatos ocultos, sem que nenhuma dessas informações se desvie minimamente da veracidade e da precisão?
Seria possível, para um ser humano — que é, afinal, parte integrante do mundo natural e vive em um plano marcado pela transformação e pela constante evolução —, intervir em todos os aspectos da experiência humana e oferecer ao mundo, de forma contínua, conhecimentos, saberes, normas, ensinamentos, parábolas e relatos, abordando tanto os aspectos mais sutis quanto os mais evidentes da realidade, sem jamais incorrer em incoerência, deficiência ou oscilação quanto à profundidade e à perfeição de seu discurso?
Isso, ademais, considerando que essas mensagens foram reveladas em momentos distintos, com temas que se entrelaçam e se ramificam a partir de fundamentos previamente estabelecidos, alguns dos quais reaparecem em diferentes contextos.
Ora, o que observamos na experiência comum é que nenhum ser humano permanece constante em termos de qualidade e excelência em suas ações e produções ao longo do tempo.
Assim, qualquer pessoa dotada de inteligência e capaz de refletir sobre tais questões não poderá deixar de reconhecer que essas qualidades abrangentes e outras tantos presentes no Alcorão estão claramente além da capacidade humana e extrapolam os limites das causas naturais e materiais. E se, porventura, alguém não for capaz de alcançar essa percepção por si próprio, que ao menos não negue sua humanidade nem ignore o julgamento inato de sua própria consciência: que recorra, nesse caso, àqueles que detêm o conhecimento e a expertise necessários para avaliar corretamente tais questões.
Poder-se-ia objetar: qual seria o benefício de estender o desafio miraculoso também ao público geral, além do círculo dos especialistas? Afinal, o senso comum é frequentemente suscetível à influência de qualquer apelo, respondendo com facilidade a todo tipo de chamado — como se viu no seguimento de figuras como al-Báb, Bahá’u’lláh, o Qadiyani ou Musaylima [indivíduos que reivindicaram, de forma fraudulenta, posições elevadas como a profecia ou semelhantes] — cujas reivindicações e “provas” mais se assemelhavam a delírios e divagações do que a discurso racional.
Responderíamos: justamente aí reside a sabedoria na universalidade do milagre e na possibilidade concreta de distinguir a excelência e o mérito em um campo onde há competição e comparação. Pois os entendimentos humanos são, por natureza, diversos, assim como os níveis de perfeição também o são. Desse modo, é inevitável que aqueles com maior capacidade de discernimento reconheçam os méritos daquilo que é realmente excelente, e que os que têm menor compreensão recorram àqueles que os superam em percepção e julgamento. [Assim como em outros campos: aquilo que um indivíduo compreende por si mesmo, ele julga e atua diretamente; e, naquilo em que encontra deficiência, recorre à orientação de um especialista. Do mesmo modo, o desafio miraculoso do Alcorão é comum e universal, embora a resposta de cada pessoa a ele possa variar de acordo com sua capacidade.] A natureza humana, por sua própria disposição instintiva, confirma este processo.
[O milagre do Alcorão manifesta-se no domínio do intelecto, da razão e do conhecimento, pois,] De fato, nada é universalmente acessível, em todos os tempos e lugares e a todas as pessoas, exceto aquilo que pertence ao domínio do conhecimento e da sabedoria. Isso porque qualquer outro tipo de milagre, que não se baseie no saber e na compreensão, será, por definição, um fenômeno natural ou sensorial, sujeito às leis materiais e, portanto, limitado pelo tempo e pelo espaço. Nesse caso, não será testemunhado senão por algumas pessoas, em determinados momentos e locais. E mesmo que se admita — hipoteticamente — que tal milagre se torne acessível a todos os indivíduos, ele ainda assim dependeria de um lugar específico, e não se estenderia a todos os lugares. E se fosse possível essa universalidade espacial, ainda assim não se aplicaria a todos os tempos e épocas.
Por isso, o Alcorão desafia a humanidade — em todos os tempos, lugares e circunstâncias — com um milagre cuja essência está no campo do conhecimento, da ciência e da razão.
O Desafio do Alcorão no Campo do Conhecimento
O Alcorão desafia, de modo especial, no campo do conhecimento e da razão, como se vê nas palavras do Altíssimo: “E revelamos a ti o Livro como esclarecimento para todas as coisas” (An-Nahl, 89), e também: “E nada há de úmido ou seco que não esteja registrado em um Livro evidente” (Al-An'am, 59), entre outras passagens.
Com efeito, o Islã — como é reconhecido por todo aquele que percorre suas diretrizes, tanto em seus princípios transmitidos pelo Alcorão quanto em suas particularidades remetidas ao Profeta (S.A.A.S.) — abrange, de forma detalhada, os saberes teológicos (filosóficos), os valores morais, e as normas religiosas práticas, sejam elas relativas ao culto, às relações sociais, à política ou à organização comunitária. Tudo isso está fundamentado na disposição inata do ser humano (fitrah) e no princípio da unicidade divina (tawḥīd), de modo que, por análise, os detalhes remontam ao princípio da "unicidade de Deus", e, por síntese, este princípio abrange todas as suas ramificações.
O Alcorão também declara que todos esses ensinamentos permanecerão válidos e eficazes para o bem-estar humano ao longo das eras e ciclos da história. Diz o Altíssimo: “E, por certo, é um Livro poderoso: falsidade alguma pode alcançá-lo, nem pela frente nem por trás; é uma revelação de um Sábio, Louvado” (Fussilat, 42), e também: “Por certo, Nós revelamos a Recordação (o Alcorão), e por certo, seremos Seu guardião” (Al-Ḥijr, 9). Assim, trata-se de um Livro que não está sujeito ao juízo da ab-rogação nem à caducidade das leis temporais do desenvolvimento e da mudança.
Se for dito: “Mas é consenso entre os estudiosos da sociedade e especialistas em legislação contemporânea que as normas sociais devem se transformar conforme as mudanças da sociedade, variando segundo o tempo e o avanço da civilização e da cultura.”
Responderemos: essa questão será abordada em sua devida profundidade na explicação do versículo: “A humanidade era uma só nação...” (Al-Baqarah, 213).
Em síntese, o Alcorão fundamenta a legislação no monoteísmo inato (fitrah) e nos valores morais enraizada na natureza primordial humano, sustentando que a lei deve brotar das raízes da criação e da existência. Já os teóricos modernos baseiam sua visão na mutabilidade da sociedade, mas desconsideram os aspectos espirituais — tanto do conhecimento do monoteísmo quanto das virtudes morais. Suas concepções, por isso, permanecem limitadas a uma noção puramente material de progresso social, privada da nobreza do espírito. No entanto, a Palavra de Deus é sempre a mais elevada.
O Desafio no Profeta a Quem o Alcorão Foi Revelado
O Alcorão também estabelece um desafio a partir da própria figura do Profeta iletrado (ummi), que apresentou uma revelação inimitável tanto em sua forma quanto em seu conteúdo, sem jamais ter aprendido com um mestre ou ter sido educado por um tutor. Deus diz:
“Dize: Se Deus quisesse, eu não vo-lo teria recitado, e Ele não vo-lo teria dado a conhecer. Já passei entre vós uma vida antes disso; então, não raciocinais?” (Yūnus, 10:16).
O Profeta (S.A.A.S.) viveu entre seu povo como um dos seus, sem se destacar por conhecimento, poesia ou eloquência. Durante cerca de quarenta anos — dois terços de sua vida —, não produziu nenhum tipo de expressão literária relevante, nem realizou feitos notáveis que indicassem um preparo extraordinário. No entanto, subitamente, ele trouxe algo que superou a capacidade de todos os intelectuais e mestres da eloquência de sua época. Trouxe ao mundo um discurso que silenciou os oradores mais eloquentes e que se espalhou pelos quatro cantos da terra, sem que qualquer sábio, erudito ou pessoa dotada de discernimento e razão ousasse enfrentá-lo em desafio.
No máximo, seus críticos alegaram que ele teria aprendido essas histórias durante viagens comerciais à Síria, com monges cristãos. No entanto, suas viagens àquela região ocorreram apenas em duas ocasiões: uma, ainda em sua infância, acompanhado de seu tio Abu Talib; e outra, aos 25 anos, com Maysarah, servo de Khadija, quando estava sempre sob observação, tanto de dia quanto de noite. E mesmo que, hipoteticamente, ele tivesse escutado algo nessas ocasiões — o que é extremamente improvável —, de onde viriam então as vastas e complexas ciências, os ensinamentos profundos e as verdades universais que apresentou? De onde teria vindo a extraordinária eloquência de sua linguagem, que fez dobrar pescoços e emudeceu as línguas mais hábeis?
Outros alegaram que ele aprendera com um ferreiro romano em Meca, que fabricava espadas. A essa acusação, Deus respondeu:
“E sabemos bem que eles dizem: ‘Um homem lhe ensina isso’. Mas a língua daquele a quem eles se referem é estrangeira, e esta [revelação] está em uma língua árabe clara.” (An-Naḥl, 16:103).
Também afirmaram que ele teria aprendido com Salman, o Persa, um sábio conhecedor das religiões e seitas. No entanto, Salman só veio a se converter ao Islã já em Medina, enquanto a maior parte do Alcorão foi revelada em Meca — inclusive os trechos que tratam das narrativas e ensinamentos mais fundamentais. Portanto, que acréscimos Salman e seus companheiros poderiam ter trazido, senão confirmação?
Além disso, quem comparar os relatos do Alcorão com os que se encontram na Torá e no Evangelho verá que o conteúdo é fundamentalmente distinto. Nas Escrituras anteriores, há passagens que atribuem aos profetas falhas e pecados que ferem a consciência moral do ser humano — coisas que a própria razão repugna até quando atribuídas a pessoas comuns, quanto mais a mensageiros de Deus. O Alcorão, ao contrário, absolve os profetas de tais imputações. Ele menciona apenas aquilo que contribui para o aprimoramento espiritual, ético e intelectual da humanidade, omitindo o que não tem valor formativo ou edificante — que, na verdade, constitui a maior parte do que se encontra nas tradições anteriores.
O Desafio do Alcorão pelas Notícias do Invisível
O Alcorão também desafiou por meio das informações sobre o Invisível (ghayb), como se evidencia em numerosas passagens. Entre elas, estão os relatos acerca dos profetas antigos e de seus povos, como se lê:
“Essas são notícias do invisível que te revelamos; tu não as conhecias, nem teu povo, antes disso.” (Húd, 11:49);
“Essa é uma das histórias do invisível que te revelamos; tu não estavas com eles quando decidiram sua trama enquanto conspiravam.” (Yúsuf, 12:102);
“Estes são alguns relatos do desconhecido, que te revelamos (ó Mensageiro). Tu não estavas presente com eles (os judeus) quando, com setas, tiravam a sorte para decidir quem se encarregaria de Maria; tampouco estavas presente quando estavam a discutir entre si...” (Al-‘Imrán, 3:44);
“Esse é Jesus, filho de Maria: a palavra da verdade da qual eles duvidam.” (Maryam, 19:34).
O Alcorão também anuncia eventos futuros, como:
“Os bizantinos foram derrotados, * Em terra muito próxima; porém, depois de sua derrota, vencerão, * Dentro de um pouco anos...” (Ar-Rúm, 30:2-4);
“Aquele que te impôs o Alcorão te fará retornar ao teu lugar de origem [Meca].” (Al-Qasas, 28:85);
“Entrareis, se Deus quiser, no Masjidul Harám em segurança, com as cabeças raspadas ou os cabelos encurtados, sem medo algum.” (Al-Fath, 48:27);
“Os que ficaram para trás dirão, quando vos dirigirdes para as conquistas, ‘Deixai-nos ir convosco.’” (Al-Fath, 48:15);
“Deus te protegerá das pessoas.” (Al-Ma’ida, 5:67);
“Fomos nós que revelamos a Mensagem, e somos nós que a protegeremos.” (Al-Hijr, 15:9).
Há ainda outras passagens proféticas que anunciam a vitória dos fiéis, a derrota dos idólatras de Meca, e outras realidades do porvir.
Outras revelações desse tipo se referem a grandes eventos escatológicos ou históricos, como:
“É vedado a qualquer povo que tenhamos destruído retornar, até que Gog e Magog sejam soltos e avancem de todas as direções. E o verdadeiro juízo se aproximará, e os olhos dos que negaram a fé ficarão fixos: ‘Ai de nós! Estávamos distraídos com isso, éramos injustos!’” (Al-Anbiyá’, 21:95-97);
“Deus prometeu àqueles de vós que creem e fazem boas obras que os fará sucessores na terra.” (An-Núr, 24:55);
“Dize: Ele é capaz de enviar contra vós um castigo de cima ou de baixo de vossos pés.” (Al-An‘ám, 6:65).
Há ainda menções que tocam em fatos científicos que só foram descobertos séculos depois, como:
“E enviamos os ventos fecundadores.” (Al-Hijr, 15:22);
“E fizemos crescer nela toda coisa medida.” (Al-Hijr, 15:19);
“E as montanhas, como estacas.” (An-Naba’, 78:7).
Essas passagens baseiam-se em verdades científicas que eram completamente desconhecidas no tempo da revelação, e que só vieram à luz com as investigações modernas.
Dessa mesma perspectiva — que é uma das características distintivas deste tipo de exegese, baseada na intertextualidade corânica — incluem-se também versos como:
“Ó vós que credes, se alguém de vós apostatar de sua fé, Deus trará um povo que Ele ama e que O ama.” (Al-Ma’ida, 5:54);
“Para cada nação há um mensageiro. Quando seu mensageiro vem, é decidido entre eles com justiça.” (Yúnus, 10:47);
“Volta teu rosto à religião pura: esta é a disposição inata com que Deus criou a humanidade.” (Ar-Rúm, 30:30).
Essas e outras passagens anunciam grandes acontecimentos futuros que afetarão a comunidade islâmica, e em alguns casos, toda a humanidade, após o tempo da revelação. Alguns desses temas serão retomados, se Deus quiser, na análise da sura Al-Isrá’.
O Desafio do Alcorão na Ausência de Contradições
O Alcorão também lança um desafio ao declarar que está isento de contradições. Diz o versículo:
“Acaso não meditam sobre o Alcorão? Se ele fosse de outra origem que não Deus, certamente encontrariam nele muitas contradições.” (An-Nisá’, 4:82)
É um dado essencial que a realidade material está sujeita à lei da mudança e do desenvolvimento progressivo. Toda entidade que compõe este universo emerge gradualmente, passando do estado de fraqueza ao de força, e da imperfeição à plenitude — tanto em sua essência quanto em suas manifestações e efeitos. Isso também se aplica ao ser humano, que se transforma continuamente em seu ser, em suas ações e nos efeitos resultantes delas, inclusive naquilo que produz com o auxílio do pensamento e da percepção.
Não há entre nós quem não reconheça que, dia após dia, adquire mais maturidade e aperfeiçoamento, e que frequentemente percebe falhas em atitudes passadas ou em palavras ditas anteriormente. Essa consciência do progresso pessoal é uma realidade que qualquer indivíduo sensível e atento reconhece.
Ora, o Alcorão foi revelado ao Profeta Muhammad (S.A.A.S.) de forma fragmentada, ao longo de vinte e três anos, em diversas circunstâncias e contextos: em Meca e Medina, de dia e de noite, em tempos de guerra e de paz, em condições de escassez e de abundância, de segurança e de temor. Ele foi transmitido ao povo por partes, com o objetivo de apresentar ensinamentos teológicos, formar a ética virtuosa e estabelecer um sistema normativo abrangente para todas as necessidades humanas.
Apesar dessa diversidade temporal e circunstancial, o Alcorão mantém uma unidade e coesão inigualáveis. Não se encontram nele contradições ou incoerências. Ele é um "livro coerente, com partes que se assemelham e se complementam" — como descreve a própria Escritura. As verdades que transmite não se anulam entre si; suas premissas e princípios não se contradizem. Pelo contrário, um versículo explica o outro, e uma parte esclarece e confirma a outra. Como disse o Imam ‘Ali (a.s.): "Algumas de suas partes falam por outras, e umas testemunham a veracidade das outras." (Nahj al-Balāgha)
Se não fosse de origem divina, observar-se-iam nele discrepâncias na qualidade da composição, nas nuances de eloquência, na solidez de suas ideias e no rigor de sua estrutura. A ausência de tais diferenças, ao longo de duas décadas e em condições tão variadas, é um forte indicativo de sua origem transcendente.
Se alguém dissesse: "Trata-se apenas de uma alegação sem base demonstrável. O Alcorão foi alvo de numerosas objeções e alegações de contradição — a ponto de se escreverem obras inteiras a esse respeito. São objeções de ordem linguística, que alegam deficiências retóricas, e também de cunho conceitual, que apontam erros nos ensinamentos, opiniões e orientações contidas no texto. As respostas oferecidas pelos estudiosos muçulmanos, em sua maioria, recorrem a interpretações e explicações que, na verdade, não passam de justificativas alinhadas a uma leitura harmoniosa e conforme uma razão sã."
Respondo: as objeções e aparentes contradições às quais se referiu estão, de fato, presentes nas obras clássicas de exegese corânica, entre outras fontes, juntamente com suas respectivas respostas — inclusive neste livro em questão. Muitas dessas objeções, ao serem analisadas, revelam-se meras alegações desprovidas de fundamentação sólida.
É raro encontrar, nas obras críticas mencionadas por tais objetores, alguma dúvida ou contradição alegada que já não tenha sido previamente analisada e respondida nas obras dos exegetas muçulmanos. O que esses críticos frequentemente fizeram foi coletar e organizar as objeções, ignorando por completo as respostas. Com razão se disse: “Se até o olhar amoroso é suspeito, quanto mais o olhar movido por hostilidade.”
Se alguém então perguntasse: "E quanto à ab-rogação (naskh) presente no Alcorão, reconhecida até mesmo pelo próprio Alcorão, como em:
‘Sempre que ab-rogamos um versículo ou o fazemos esquecer, trazemos outro melhor ou semelhante a ele’ (Al-Baqarah, 2:106),
ou:
‘E quando substituímos um versículo por outro — e Deus sabe melhor o que revela...’ (An-Nahl, 16:101) —
não se trata isso, afinal, de uma forma de divergência, ainda que não chegue a ser contradição literal?"
Respondo: A ab-rogação (naskh), evidentemente, não constitui contradição textual, e também não representa divergência de julgamento. Trata-se, na verdade, de uma adaptação do conteúdo normativo à mudança de contexto e de necessidade. O que se modifica não é o princípio, mas a aplicação prática do juízo, que se ajusta de acordo com a utilidade e as circunstâncias da época.
Aliás, muitas das passagens corânicas cujas regras foram posteriormente ab-rogadas são acompanhadas por indicações linguísticas que sugerem, já de início, que a norma em questão não é definitiva. Um exemplo é o versículo:
‘E aquelas de vossas mulheres que cometerem obscenidade, chamai quatro testemunhas de vós contra elas. E se testemunharem, então mantende-as em casa até que a morte as leve, ou que Deus lhes abra um caminho.’ (An-Nisā’, 4:15)
Observe-se como a cláusula final ‘ou que Deus lhes abra um caminho’ já insinua que uma mudança futura está prevista.
Outro exemplo está em:
‘Muitos dos que receberam o Livro gostariam de fazer-vos regressar à incredulidade, após terdes crido... Perdoai, pois, e relevai, até que Deus decida sobre o assunto.’ (Al-Baqarah, 2:109)
Aqui, o encerramento ‘até que Deus decida sobre o assunto’ também sugere a natureza transitória da orientação dada.
O Desafio do Alcorão quanto à Eloquência
O Alcorão também lançou um desafio com base em sua eloquência, como se lê na seguinte passagem:
“Ou dizem: ‘Ele o forjou’? Dize: ‘Trazem então dez capítulos forjados semelhantes a ele e chamem quem puderem, além de Deus, se estiverem dizendo a verdade. E, se não vos responderem, sabei que ele foi revelado com a ciência de Deus, e que não há divindade senão Ele. Submeter-vos-eis então?’” (Hûd, 13–14).
Em outro versículo, também de caráter desafiador, afirma-se:
“Ou dizem: ‘Ele o inventou’? Dize: ‘Trazem então uma sura semelhante a ele e chamem quem puderem, além de Deus, se estiverem dizendo a verdade’. Mas rejeitam o que não podem abranger com seu conhecimento, e ainda não lhes chegou a sua interpretação.” (Yûnus, 38–39).
Ambos os versículos são de revelação mequense e o desafio aqui proposto se dá no nível da composição e da eloquência — um aspecto notoriamente valorizado entre os árabes da época. É consenso entre os historiadores que os árabes pré-islâmicos atingiram um nível de excelência retórica e literária sem paralelo, quer entre os povos anteriores, quer entre os posteriores. Eles dominaram a arte do discurso com precisão no estilo, nobreza na expressão, concisão na linguagem e adequação ao contexto, tudo com fluência e naturalidade impressionantes.
Foi nesse cenário que o Alcorão os desafiou em todos os níveis possíveis, despertando o orgulho tribal e literário dos árabes, conhecidos por seu apego à própria produção linguística e por sua resistência a se submeter à superioridade de outrem. O desafio se estendeu por longo período e, apesar disso, não produziram resposta equivalente. O silêncio diante do desafio não fez senão confirmar sua incapacidade, levando-os à evasão e à negação, como expressa o versículo:
“Sabei, em verdade, que eles (os idólatras) mergulham seus rostos nos mantos, buscando ocultar-se de ouvir o Alcorão! Sabei! Quando envolvem suas vestes sobre as cabeças, pensam que assim se esconderão — mas Deus bem conhece o que ocultam e o que revelam!” (Hûd, 11: 5).
Já se passaram mais de catorze séculos desde a revelação do Alcorão, e ainda assim ninguém produziu algo que se equiparasse a ele em eloquência. Aqueles que tentaram não fizeram mais que expor seu próprio fracasso.
O relato histórico registrou algumas dessas tentativas frustradas de imitação. Por exemplo, Musaylima [falso reivindicador da profecia], o impostor, procurou rivalizar com o capítulo do Elefante, dizendo:
“O elefante, o que é o elefante? E o que te fará saber o que é o elefante? Ele tem uma cauda curta e uma tromba longa.”
Em outra ocasião, dirigindo-se à [falsa] profetisa Sajâḥ, afirmou:
“Nós vos penetraremos — com que penetração!
e de vós o faremos sair — com que saída!”
Observa tais palavras, desprovidas de sentido e valor.
Alguns cristãos, por sua vez, tentaram imitar a sura al-Fâtiḥa com esta composição:
“Louvado seja o Misericordioso, Senhor dos mundos, Rei, Juiz. A Ti pertence a adoração, e de Ti buscamos ajuda. Guia-nos ao caminho da fé.”
Esses e outros exemplos de imitação apenas confirmam o inimitável caráter do Alcorão em sua linguagem, estrutura e profundidade.
Objeção: Pode-se perguntar: como é possível que uma composição linguística atinja um nível de eloquência que seja milagroso para o ser humano, se a produção da linguagem está dentro das capacidades da inteligência humana?
[A língua é inventada por ser humano, portanto,] Como pode algo emergir da mente humana sem que ela mesma o compreenda, sendo que [de acordo com uma regra intelectual] o agente é superior à sua ação, e a causa é mais abrangente que o efeito?
Explicando de outro modo: foi o próprio ser humano quem estabeleceu o uso das palavras como sinais representativos de significados, em necessidades sociais de comunicar seus pensamentos aos outros. Assim, a capacidade de expressar significados por meio da linguagem é uma convenção arbitrária criada pelo ser humano. Portanto, é inconcebível que esse produto da mente humana, ultrapasse os limites da própria mente, alcançando um patamar inatingível por ela. Seria, pois, contraditório afirmar que a linguagem pudesse revelar algo cuja complexidade superasse a própria faculdade de expressão que a originou. Isso seria concebível apenas se considerasse tal linguagem como possuidora de uma natureza distinta da convencionalidade linguística [; hipótese que contradiz tanto a realidade quanto as premissas estabelecidas.].
Além disso, se admitíssemos que entre as composições linguísticas humanas houvesse uma estrutura que atingisse o nível do milagre, isso implicaria que para cada significado pretendido existiriam múltiplas formas de expressão — algumas mais eficazes, outras menos — e entre elas haveria uma forma suprema, inatingível pelo ser humano, constituindo o termo “composição milagrosa”. Desse modo, para cada ideia haveria uma única expressão linguística verdadeiramente miraculosa. No entanto, o próprio Alcorão apresenta diversas formulações para um mesmo conteúdo, recorrendo a múltiplos estilos e estruturas em diferentes passagens. Isso é especialmente evidente nos relatos históricos e narrativas, que aparecem sob formas variadas. Se as formulações fossem realmente milagrosas em si mesmas, deveríamos encontrar apenas uma estrutura ideal para cada conteúdo específico — o que não é o caso.
Resposta: Essas objeções, entre outras similares, levaram alguns estudiosos da inimitabilidade (iʿjāz) do Alcorão a adotar a teoria da ṣarfah (impedimento divino), segundo a qual Deus ativamente impede a reprodução do estilo corânico. Essa inibição divina teria como finalidade preservar o sinal profético e proteger a legitimidade da mensagem revelada. [Segundo essa teoria, o talento humano, por si só, seria capaz de produzir algo como o Alcorão Sagrado. No entanto, como Deus deseja preservar o Alcorão como um milagre eterno, Ele ativamente impede que os seres humanos criem algo semelhante.]
No entanto, essa teoria não se sustenta à luz do texto explícito das passagens corânicas de desafio. Por exemplo, em capítulo Hūd [13–14], Deus diz: “Dizem: ‘Ele o forjou.’ Dize: ‘Trazei, pois, dez capítulos semelhantes forjadas por vós e convocai quem puderdes, além de Deus, se estiverdes certos.’ Mas, se não vos responderem, sabei que foi revelado com a ciência de Deus.” Esta última frase indica claramente que o desafio tem como objetivo demonstrar que o Alcorão não é fruto da fala do Profeta Muhammad (S.A.A.S.), mas sim uma revelação provinda de Deus, fundamentada em Sua ciência, e não algo inspirado por forças ocultas ou demoníacas.
Em outro capitulo: “... Ou dizem: ‘Ele o forjou’? Pelo contrário, eles não creem. Que tragam, então, uma fala semelhante, se forem verídicos.” (At-Tūr, 34). E ainda: “E não foram os demônios que o trouxeram; não lhes convém isso e nem são capazes. Eles estão afastados da escuta.” (Ash-Shuʿarā’, 212).
A teoria da ṣarfah adotada por alguns estudiosos para explicar a inimitabilidade do Alcorão, implica que o sinal profético está no próprio impedimentodivino: ou seja, Deus impede os seres humanos de imitarem o Alcorão, ainda que tal imitação fosse, em tese, possível para suas capacidades linguísticas. Assim, a inimitabilidade (iʿjāz) residiria no fato do impedimento em si, e não na origem divina do texto, nem no fato de ele ser a própria Palavra de Deus.
Esse entendimento, porém, entra em conflito com o que está claramente indicado em outras passagens do Alcorão, como a seguinte: “Dize: Trazei, então, uma sura semelhante a esta e chamai quem puderdes além de Deus, se forem verídicos. Pelo contrário, negaram aquilo cujo conhecimento não abrangem, e ainda não lhes chegou a sua interpretação.” (Yūnus, 39). Esta passagem deixa claro que a razão pela qual os seres humanos são incapazes de produzir algo semelhante ao Alcorão não é o fato de Deus os impedir (como propõe a Sarfah), mas sim é por causa da essência do Alcorão e a realidade interior (ta’wīl) dele, que está além do alcance de seu conhecimento. É essa profundidade, inacessível a qualquer um exceto Deus, que inviabiliza toda tentativa de imitação — ou seja, a inimitabilidade é intrínseca à estrutura e ao conteúdo do próprio texto.
O mesmo se aplica à afirmação corânica: “Não meditam o Alcorão? Se fosse de outro que não Deus, encontrariam nele muitas contradições.” (An-Nisā’, 82). O versículo implica: o que impossibilita a produção de algo semelhante ao Alcorão é o fato de ele ser internamente coerente em termos de linguagem e conteúdo, algo que nenhum discurso humano poderia alcançar plenamente. Portanto, a noção de que o milagre do Alcorão reside em um impedimento externo imposto por Deus (ṣarfah) é uma explicação inadequada e sem base suficiente nos próprios textos revelados.
Quanto à objeção de que: considerar o Alcorão milagroso por sua eloquência seria contraditório — já que a eloquência, sendo uma qualidade da linguagem, é fruto da capacidade humana, portanto, não poderia exceder os limites dessa mesma capacidade.
A resposta é a seguinte: o que efetivamente provém da inteligência humana é o uso dos termos individuais para indicar significados. No entanto, a ordenação e articulação de sentenças de modo a representar com precisão, a beleza do sentido composto, sua estrutura e organização exigem um nível de engenhosidade e sofisticação retórica que transcende a simples atribuição de significados às palavras.
Além disso, organizar ideias de modo que representem a realidade com precisão — incluindo suas causas, efeitos, antecedentes e implicações — não depende apenas de conhecer o significado das palavras. Isso exige algo mais: uma combinação refinada de inteligência, sensibilidade linguística e domínio da arte da retórica. Trata-se de perceber com clareza as relações entre os conceitos e expressá-las de forma harmônica, clara e impactante. Essa habilidade, quando levada ao mais alto grau de perfeição, ultrapassa os limites normais da capacidade humana. Por isso, a eloquência e a estrutura do Alcorão são consideradas milagrosas: elas resultam de uma composição que nenhum discurso humano consegue igualar.
Há, aqui, três dimensões distintas que podem coexistir ou manifestar-se de forma independente. Uma pessoa pode, por exemplo, dominar plenamente uma língua, conhecendo todos os seus vocábulos, mas ainda assim ser incapaz de articular frases ou se expressar verbalmente. Pode também haver quem possua grande habilidade na arte da retórica e na estruturação do discurso, mas não detenha conhecimento suficiente sobre o tema e os conteúdos abordados — o que a impede de tratar tais temas com profundidade e fidelidade. Por fim, é possível que alguém reúna vasto saber e uma sensibilidade aguçada, mas ainda assim não consiga expressar com clareza o que percebe, falhando em traduzir em palavras a beleza e a forma do sentido que intui.
Essas três dimensões são distintas: a primeira se refere à capacidade linguística adquirida por meio da vida em sociedade; a segunda e a terceira dizem respeito a uma sutileza da faculdade cognitiva. Ora, é evidente que as capacidades cognitivas humanas são limitadas — não conseguimos abarcar todos os aspectos da realidade com exatidão, em todos os seus vínculos e condições. Por isso, estamos sempre expostos ao erro, em qualquer momento. Além disso, o desenvolvimento humano é gradual: passamos constantemente da ignorância ao saber, do imperfeito ao mais elaborado. Qual orador ou poeta, por mais talentoso que seja, teria o mesmo nível de expressão em sua juventude que alcançaria após anos de maturação intelectual e estética? Todo discurso humano, por melhor que seja, carrega inevitavelmente essa marca da limitação: ele nunca está completamente isento de falhas, porque seu autor não conhece a totalidade da realidade (primeiro ponto); tampouco esse discurso se mantém uniforme em estilo e conteúdo ao longo do tempo — mesmo sem percebermos, nossas expressões evoluem com nossa própria evolução (segundo ponto).
Assim, se encontrarmos um discurso coerente do início ao fim, sem contradições ou afirmações infundadas, é uma evidência de que não estamos diante de um discurso humano. É justamente isso que o Alcorão afirma quando diz:
“Não meditam, por acaso, no Alcorão? Se ele fosse de outra fonte que não Deus, encontrariam nele muitas contradições.” (An-Nisā’ 4:82);
e ainda:
“Pelo céu que retorna, e pela terra que se fende! Em verdade, este é um discurso decisivo — não é uma palavra fútil.” (At-Tāriq 86:11–14).
Veja como o juramento pelo céu e pela terra — elementos em constante transformação — contrasta com a estabilidade do sentido do Alcorão, fundado numa verdade imutável, enraizado no seu ta’wīl (sua realidade última e definitiva, fora do ambiente das palavras), como será explicado adiante.
Outras passagens confirmam essa noção de estabilidade e transcendência:
“Mas é, de fato, um Alcorão glorioso, guardado em Tábua Preservada.” (Al-Burūj 85:21–22);
“Pelo Livro evidente! Fizemo-lo um Alcorão árabe, para que compreendais. E ele está, em verdade, junto de Nós, no Livro-Matriz, elevado e sábio.” (Az-Zukhruf 43:2–4);
e também:
“E juro pelo pôr das estrelas — e este é, se soubésseis, um juramento grandioso — que este é um Alcorão nobre, num Livro resguardado, que apenas os purificados tocam.” (Al-Wāqiʿah 56:75–79).
Esses versículos e outros semelhantes indicam que o conteúdo do Alcorão se baseia em verdades imutáveis, não sujeitas a alteração — e que, portanto, o próprio Alcorão, permanece também inalterável.
Com base no que foi exposto, torna-se evidente que o fato de a linguagem ter sido instituída pelo ser humano não implica, necessariamente, que não possa existir uma composição linguística que ultrapasse sua própria capacidade expressiva. Tal ideia seria análoga a afirmar que o ferreiro que forja espadas deve, por isso, ser o mais corajoso entre aqueles que as empunham; que o inventor do jogo de xadrez precisa ser seu melhor jogador; ou que o criador de um instrumento musical deve, obrigatoriamente, ser o mais habilidoso ao tocá-lo.
Fica, assim, claro que a eloquência plena depende de uma forma de conhecimento que esteja em conformidade com a realidade — tanto na adequação entre o vocábulo e o significado pretendido, quanto na correspondência entre o sentido concebido e a realidade externa que ele representa na mente.
Quanto à palavra, exige-se que a ordem de seus elementos, estabelecida pela convenção linguística, corresponda à ordem natural dos componentes do significado que ela expressa — ou seja, que o arranjo linguístico coincida com o arranjo conceitual, como bem explicou o estudioso ʿAbd al-Qāhir al-Jurjānī em sua obra Dalāʾil al-Iʿjāz.
Quanto ao significado, exige-se que ele seja verídico e fiel à realidade exterior, de modo que não se afaste da verdade dos fatos. Esta fidelidade ao real é, na verdade, o fundamento sobre o qual repousa a eficácia do elemento anterior, pois, há sátiras muito bem elaboradas do ponto de vista retórico, mas que não resistem à força de uma argumentação séria; e há discursos eloquentes baseados na ignorância que jamais se equiparam à linguagem moldada pela sabedoria. O discurso que reúne clareza lexical, vigor estilístico, profundidade semântica e fidelidade à realidade é, portanto, o mais elevado dos discursos.
Quando o conteúdo de um discurso está em plena conformidade com a verdade, ele não contradiz outras verdades nem é contradito por elas. Pois a verdade é internamente coesa e integrada — suas partes se sustentam mutuamente. Uma verdade não anula outra, nem um discurso verídico desmente outro que também o seja. O erro, por outro lado, é que se opõe tanto à verdade quanto a outros erros. Observa a palavra de Deus: “Que existe, então, além da verdade, senão o desvio?” (Yūnus, 10:32), que indica que a verdade é una, indivisível e sem dispersão. Compare, ainda, com: “E não sigais os caminhos (divergentes), pois vos afastarão de Sua Senda” (al-Anʿām, 6:153), que indica que o erro é, por natureza, fragmentado e dispersivo.
Dessa forma, entre os elementos da verdade não há contradição, mas sim perfeita harmonia. Uma parte conduz à outra, gera e confirma a seguinte, e todas se testemunham e refletem mutuamente.
Esse é justamente um dos aspectos extraordinários do Alcorão: cada versículo carrega um significado vivo, produtivo, que não se esgota. Sempre que um versículo é associado a outro de conteúdo afim, surge uma nova verdade, original e profunda. Um terceiro versículo, então, a confirma e corrobora. Essa é a dinâmica própria do Alcorão. Ao longo desta obra, serão apresentados diversos exemplos desse fenômeno — embora o caminho permaneça, em grande parte, inexplorado. Se os exegetas tivessem seguido essa via metodológica, teríamos hoje acesso a fontes abundantes de suas águas puras e aos tesouros preciosos ocultos em sua profundidade.
Com isso, torna-se claro que as objeções anteriormente discutidas são infundadas de ambos os lados. O caráter miraculoso da eloquência do Alcorão não se fundamenta meramente na dimensão verbal, como se bastasse dizer que, sendo o ser humano o criador da linguagem, ele deveria ser também capaz de produzir sua forma mais eloquente e perfeita. Tampouco se sustenta a ideia de que haveria uma única formulação ideal possível para expressar determinado sentido, tornando inviável que um mesmo conteúdo seja comunicado por diferentes construções, todas igualmente elevadas e inimitáveis. A questão central, na verdade, está na preservação integral do sentido — tanto em sua coerência interna no plano mental quanto em sua correspondência fiel com a realidade objetiva. É essa harmonia que sustenta a inimitabilidade do discurso corânico.
O Milagre do Alcorão: Seu Significado e Interpretação
É indiscutível que o Alcorão afirma, de forma clara, a realidade dos milagres — compreendidos como eventos extraordinários que rompem com o curso habitual da natureza, evidenciando a ação de uma realidade supranatural no mundo físico e na origem da matéria. Tais acontecimentos, porém, não devem ser interpretados como violações contra razão ou anuladores das verdades racionais fundamentais.
[Por outro lado] As interpretações forçadas de certos indivíduos vinculados ao campo científico, que procuram harmonizar tais versículos com as aparências sugeridas pelas teorias das ciências naturais contemporâneas, não passam de artifícios interpretativos insustentáveis, que carecem de base legítima e, portanto, devem ser rejeitados.
Aquilo que o Alcorão transmite quanto ao significado de "milagre" como um evento que transcende as leis naturais e expressa sua realidade autêntica será abordado em tantas categorias:
1 – A Confirmação, pelo Alcorão, do princípio da causalidade universal
O Alcorão reconhece que os acontecimentos no mundo natural possuem causas e valida o princípio da causalidade universal — princípio este que é afirmado tanto pela razão quanto pelos métodos científicos e pelas abordagens inferenciais. O ser humano, por sua própria natureza, está inclinado a considerar que para cada ocorrência há uma causa necessária que a antecede, sem hesitação ou dúvida.
Do mesmo modo, as ciências naturais e as demais disciplinas científicas atribuem os fenômenos observados a causas que se mostraram, com base empírica, adequadas para explicá-los.
Por “causa” entende-se um fator único, ou um conjunto de fatores, cuja ocorrência, em determinadas condições, conduz regularmente à ocorrência de um outro fenômeno que se denomina “efeito”. A experiência demonstra, por exemplo, que onde há combustão, deve necessariamente ter havido antes uma causa eficiente, como o fogo, o movimento, o atrito, entre outros.
É nesse sentido que se compreende a universalidade e a regularidade da relação entre causa e efeito, e suas consequências necessárias.
Essa concepção é claramente confirmada pelo Alcorão em tudo aquilo que ele relata — seja referente à morte e à vida, ao sustento, ou a outros acontecimentos tanto celestes quanto terrestres — mesmo quando, por uma exigência teológica do monoteísmo, tais eventos são, em última instância, atribuídos à vontade divina.
Assim, o Alcorão ratifica a validade do princípio da causalidade geral: ou seja, se uma causa se manifesta em conjunto com todas as suas condições e sem impedimentos, então o surgimento do efeito correspondente decorre dela necessariamente, por permissão de Deus. Do mesmo modo, a ocorrência do efeito é indicativa da presença de sua causa antecedente, de modo inevitável.
2 – A afirmação corânica dos fenômenos que rompem com o curso natural das coisas
O Alcorão relata uma série de eventos e ocorrências que não se explicam pelo curso habitual e observável da natureza, estruturado segundo a relação de causa e efeito do mundo material. Esses acontecimentos extraordinários são os chamados sinais milagrosos, atribuídos a diversos profetas — como Noé, Húde, Salih, Abraão, Lot, Davi, Salomão, Moisés, Jesus e Muhammad (que a paz esteja com todos eles). São eventos que ultrapassam o funcionamento regular e contínuo das leis naturais.
Contudo, é essencial compreender que, embora esses fatos contrariem o que é habitual na experiência sensível, não são, por isso, impossíveis em si mesmos, de modo que a razão os rejeite como absurdos. Eles não se equiparam a proposições logicamente contraditórias, como afirmar que: a afirmação e a negação podem coexistir ou desaparecer simultaneamente, ou que algo possa não ser o que é, ou ainda que o número um não seja a metade de dois — exemplos clássicos de impossibilidades intrínsecas.
De fato, como poderia considerá-los logicamente impossíveis, se incontáveis mentes racionais, ao longo das eras e em diferentes civilizações, aceitaram a realidade desses milagres sem rejeição ou repulsa? Se fossem realmente impossíveis por essência, nenhuma mente sã os teria admitido, tampouco teriam servido como base de argumentação, ou sido atribuídos com convicção a figuras históricas.
Além disso, o conteúdo essencial dos milagres — transformações, rompimentos e mudanças — não é estranho à própria natureza, que constantemente se manifesta em alterações: o vivo torna-se morto, o morto retorna à vida, formas se transformam em outras formas, eventos sucedem-se em novas configurações, a adversidade dá lugar à prosperidade e vice-versa. A diferença entre o funcionamento habitual da natureza e o milagre não está, pois, na essência do fenômeno, mas no modo de sua ocorrência.
Os processos naturais, tal como os conhecemos, operam por meio de causas materiais observáveis, combinadas a condições específicas de tempo e espaço, e produzem seus efeitos gradualmente. Por exemplo, embora seja teoricamente possível que um bastão se transforme em serpente ou que um corpo em decomposição retorne à vida, isso não ocorre senão por meio de causas naturais específicas, em condições determinadas, pelas quais a matéria passa de um estado a outro, revestindo-se de diferentes formas até alcançar sua configuração final — tudo isso de acordo com o que a observação e a experiência empírica confirmam.
Já os milagres, conforme relatados pelo Alcorão, ocorrem sem essas etapas graduais e sem a mediação de causas naturais conhecidas, manifestando-se subitamente, por vontade de Deus ou intervenção direta, o que lhes confere o caráter de evento extraordinário.
Assim como os sentidos e a experiência empírica simples não são suficientes para comprovar tais eventos extraordinários, também a análise científica, baseada no sistema causal natural, encontra dificuldade em admiti-los — pois se limita ao que é mensurável dentro do quadro conhecido das relações materiais e das hipóteses elaboradas a partir da experiência repetida.
Ainda assim, o fato de os milagres contrariarem o curso ordinário da natureza não significa que o saber científico seja capaz de negá-los. Há inúmeros relatos de fenômenos extraordinários protagonizados por pessoas devotadas à ascese ou à prática espiritual rigorosa, que são amplamente testemunhados, documentados e divulgados em jornais, revistas e outras publicações. Tais registros tornam difícil, senão impossível, para um observador atento, negar a ocorrência desses fatos ou duvidar de sua existência.
Esse tipo de fenômeno é o que levou diversos estudiosos contemporâneos dedicados à investigação dos efeitos espirituais a explicá-lo por meio da atuação de ondas eletromagnéticas desconhecidas. Eles propuseram a hipótese de que os intensos exercícios espirituais e ascéticos confeririam ao ser humano um tipo de domínio sobre forças sutis e codificadas — ondas poderosas que o envolvem ou se tornam extensões de sua vontade e consciência. Dessa forma, o praticante seria capaz de produzir, por meio de gestos ou intenções, efeitos extraordinários sobre a matéria — como movimentos, transformações ou manipulações que rompem com as leis habituais da natureza.
Caso essa hipótese se confirmasse de maneira coerente e sem contradições, ela abriria caminho para uma nova teoria abrangente, capaz de explicar não apenas tais fenômenos extraordinários, mas também os eventos naturais mais comuns, os quais anteriormente eram justificados por hipóteses distintas, baseadas nos conceitos tradicionais de movimento e potência [no seu sentido filosófico]. Essa nova abordagem reuniria, portanto, os diversos fenômenos materiais sob uma única e ampla explicação natural.
[O renomado exegeta não pretende analisar detalhadamente, endossar ou rejeitar esta perspectiva em sua totalidade. Seu objetivo, antes, é utilizá-la para demonstrar que o milagre possui tamanha compatibilidade com fundamentos racionais que até mesmo alguns cientistas buscam estabelecer parâmetros naturais para fenômenos extraordinários.
Além disso, ele prepara o terreno para expor que, embora os milagres emanem de uma origem sobrenatural e metafísica, não passa sem nenhuma relação entre os fatores materiais. Ou seja, os fenômenos milagrosos, mesmo que têm uma relação específica com a sua fonte metafísica, que os governa, têm um vínculo material entre seus fatores, ainda que seja desconhecido pelo comum. Isso fica evidente quando observamos que, por exemplo, os castigos divinos infligidos a povos rebeldes - como os ocorridos através de ventos, inundações e terremotos - manifestaram-se mediante elementos naturais. Do mesmo modo, a ave criada por Jesus (A.S.) origina-se do barro, substância pertencente ao mundo material.]
Essa é, pois, a posição de alguns estudiosos.
E, em linhas gerais, ela contém uma parcela da verdade: não há sentido em admitir um efeito natural sem uma causa natural correspondente, desde que se reconheça que a conexão entre eles permanece dentro da ordem natural. Em outras palavras, o que se entende por “causa natural” nada mais é do que a conjunção de determinados elementos materiais, unidos por relações e proporções específicas, das quais emerge um novo fenômeno material, que é posterior e dependente daqueles elementos. Tal fenômeno não ocorreria se as condições anteriores fossem alteradas ou rompidas.
Já o Alcorão, embora não identifique explicitamente uma causa natural última que explique tanto os fenômenos comuns quanto os extraordinários — pois, está fora de seu objetivo final —, afirma que todo evento material possui uma causa material, porém, sempre sob a permissão de Deus, o Altíssimo. Em outros termos, os acontecimentos neste mundo material, mesmo que têm em Deus sua origem, como os milagres — e, de fato, tudo remonta a Ele — seguem um percurso natural e um canal específico por meio dos quais o influxo existencial divino se concretiza na realidade criada.
É o que se depreende, por exemplo, da seguinte passagem:
“E quem teme a Deus, Ele lhe dará uma saída e o sustentará por caminhos que ele nem imagina. E quem deposita sua confiança em Deus, Ele lhe basta. Em verdade, Deus realiza Seu desígnio; Deus estabeleceu uma medida para todas as coisas.”
(Sura At-Talāq, 65:2–3)
O início do versículo expressa de forma absoluta e sem restrições que, para aquele que teme a Deus e n’Ele confia — mesmo que as causas aparentes e ordinárias apontem para o contrário —, Deus será suficiente, e Seu decreto se cumprirá inevitavelmente.
O mesmo princípio é reforçado por outras passagens, como:
“E quando Meus servos perguntarem por Mim, certamente estou próximo: atendo ao chamado de quem Me invoca, quando Me invoca.”
(Al-Baqarah, 2:186)
“Invocai-Me, e Eu vos atenderei.”
(Al-Mu’min, 40:60)
“Acaso Deus não é suficiente para Seu servo?”
(Az-Zumar, 39:36)
A frase seguinte, no versículo: "Deus alcança o que determina" (At-Talāq, 3), serve como fundamento para a afirmação anterior, e encontra paralelo em outra passagem: "Deus domina o Seu desígnio, ainda que a maioria das pessoas não compreenda" (Yūsuf, 21). Esta é uma declaração absoluta, isenta de qualquer restrição: Deus, exaltado seja, possui meios de realizar qualquer evento que tenha sido objeto de Sua vontade e determinação — ainda que os meios habituais e as causas ordinárias estejam, naquele contexto, ausentes ou suspensos.
[Vamos revisitar o tema] Isso (milagre) pode ser compreendido de duas maneiras:
- 1) Deus realiza o que quer sem qualquer causa material ou agente natural, valendo-se apenas de Sua vontade direta;
- 2) Ou, há de fato uma causa natural — embora velada ao nosso conhecimento — que está sob o domínio de Deus, a partir da qual Ele realiza o que deseja.
A sequência do versículo, "Deus estabeleceu uma medida para todas as coisas", sustenta a segunda interpretação. Ela indica que tudo, seja resultado de causas naturais ordinárias ou não, possui uma medida determinada por Deus, com relações e conexões específicas com outros entes do universo. Mesmo quando as causas habituais não estão evidentes ou não parecem operar, existem vínculos e articulações reais que ligam os eventos aos demais seres criados. Tais conexões, no entanto, não são autônomas, pois não pertencem intrinsecamente aos próprios entes; são estabelecidas e mantidas por Deus, a quem tudo obedece e se submete.
O versículo, portanto, evidencia que Deus instaurou ligações e inter-relações entre todas as coisas, e é por meio delas que Ele alcança tudo o que deseja, da forma como desejar. Isso não implica a negação do princípio de causalidade ou da relação de causa e efeito entre os entes; ao contrário, afirma-se que tais relações estão sob o controle de Deus, que as dirige conforme Sua vontade. Existe, sim, causalidade e conexão real entre os seres e os acontecimentos que os antecedem, porém, não exatamente como se observa na ordem aparente dos fenômenos naturais — razão pela qual as hipóteses científicas muitas vezes se mostram incapazes de explicar integralmente os eventos do existir. Essas relações ocorrem de acordo com o conhecimento e a ordenação divina.
Essa realidade é também atestada por diversos versículos relacionados ao conceito de qadar (destino ou medida), como:
- 1) "Não há coisa alguma cujos tesouros não estejam junto a Nós, e Nós a fazemos descer com medida determinada" (Al-Ḥijr, 21);
- 2) "Em verdade, criamos todas as coisas com medida" (Al-Qamar, 49);
- 3) "E criou todas as coisas e as dispôs com precisão" (Al-Furqān, 2);
- 4) "Aquele que criou e deu forma, que determinou e guiou" (Al-Aʿlā, 2–3);
- 5) "Nenhuma calamidade ocorre na terra nem em vós mesmos, sem que esteja registrada num Livro, antes mesmo de a criarmos" (Al-Ḥadīd, 22);
- 6) "Nenhuma calamidade ocorre senão com a permissão de Deus. E quem crê n’Ele, Deus orienta o seu coração. Deus é conhecedor de todas as coisas" (At-Taghābun, 11).
Esses versículos indicam que os entes descem da esfera da indeterminação à esfera da especificidade e da individuação por meio de um ato de determinação divina (taqdīr) que antecede e acompanha a sua existência. Não faz sentido dizer que algo é “medido” ou “determinado” em sua existência, a menos que ele esteja definido em todas as suas relações com os demais seres. O ente material está inevitavelmente vinculado a uma rede de outros entes materiais que lhe dão forma, limites e identidade. Assim, todo ser material está envolvido por um sistema de relações causais, sendo, por consequência, o efeito de outra realidade anterior, de modo necessário.
Também se pode reforçar o argumento anterior com base nas seguintes palavras do Altíssimo: "Esse é Deus, vosso Senhor, Criador de todas as coisas" (Al-Mu’min, 62), e: "Não há criatura que Ele não detenha pelo topo de sua cabeça. Por certo, meu Senhor está em caminho reto" (Hūd, 56). Consideradas em conjunto com o que já foi mencionado — de que o Alcorão confirma o princípio geral da causalidade —, essas passagens permitem deduzir a conclusão pretendida.
Com efeito, o primeiro versículo afirma de modo universal que tudo quanto existe é criação de Deus, exaltado seja. O segundo estabelece que a criação e a existência seguem um único caminho, ordenado e regular, sem contradição, descontinuidade ou arbitrariedade.
Ora, como já analisado, o Alcorão reconhece a validade do princípio de causalidade entre os entes materiais. Daí se conclui que a ordem do existir, seja nos fenômenos regulares e habituais, seja nos eventos extraordinários e fora do comum, segue uma mesma lógica uniforme: todo acontecimento está vinculado a uma causa anterior que o torna possível, dentro de um encadeamento coerente e constante.
Disso decorre que as chamadas “causas habituais”, que por vezes parecem falhar em produzir seus efeitos esperados, não constituem causas verdadeiras em sentido último. Em vez disso, existem causas reais, constantes e invariáveis, cuja ação é firme e cujas propriedades não se interrompem — como, inclusive, é sugerido por certas observações científicas e também por fenômenos extraordinários que desafiam o curso comum dos acontecimentos, conforme já mencionado.
3. O Alcorão atribui a Deus aquilo que é atribuído à causa material
Além disso, o Alcorão, ao mesmo tempo em que reconhece a relação de causalidade entre os seres — afirmando que alguns possuem influência sobre outros —, também atribui todos os acontecimentos, em última instância, a Deus, exaltado seja. Disso se conclui que as causas existentes no mundo não são independentes em sua ação, e que o verdadeiro agente, no sentido pleno do termo, é somente Deus, cuja soberania é absoluta.
Como diz o versículo: “Acaso não pertence a Ele a criação e o comando?” (Al-A’rāf, 7:54). E também: “A Deus pertence tudo o que há nos céus e na terra” (Al-Baqarah, 2:284); “D'Ele é o domínio dos céus e da terra” (Al-Hadīd, 57:5); “Dize: tudo provém de Deus” (An-Nisā’, 4:78), entre muitos outros versículos que afirmam claramente que tudo é propriedade exclusiva de Deus, sem que ninguém compartilhe com Ele tal domínio.
Deus dispõe de todas as coisas como quiser e ninguém pode agir sobre qualquer parte da criação, a não ser com Sua permissão — e mesmo essa permissão não concede autonomia plena, mas apenas uma autorização dependente do querer divino.
Como se lê no Alcorão: “Dize: Ó Deus, Senhor do domínio! Concedes o domínio a quem queres e o retiras de quem queres” (Āl ʿImrān, 3:26); e também: “Aquele que deu a cada coisa sua forma, e depois a guiou” (Ṭā-Hā, 20:50); e ainda: “A Ele pertence o que está nos céus e na terra. Quem poderá interceder junto a Ele, a não ser com Sua permissão?” (Al-Baqarah, 2:255); “Depois estabeleceu-se no trono e governa os assuntos. Ninguém intercede junto a Ele, exceto após Sua permissão” (Yūnus, 10:3).
Portanto, as causas apenas possuem sua capacidade de causar porque Deus lhes conferiu tal função. Elas não atuam de forma independente, mesmo enquanto exercem a causalidade. Esse princípio é descrito no Alcorão pelos termos “intercessão” (shafāʿah) e “permissão” (idhn), indicando que toda ação das causas pressupõe um consentimento divino.
Ora, sabe-se que a permissão só tem sentido quando existe, um impedimento à ação por parte do agente. E tal impedimento, por sua vez, só faz sentido se o agente possuir em si uma capacidade ou aptidão, a qual se encontra limitada por esse obstáculo.
Dessa forma, compreende-se que toda causa possui em si um princípio de ação e um poder causal pelo qual pode produzir seu efeito. No entanto, mesmo assim, o comando último pertence sempre a Deus, exaltado seja.
[Em síntese: Tanto a capacidade de agir conferida à causa provém de Deus, quanto o exercício efetivo dessa ação se dá unicamente por Sua permissão.]
4 – O Alcorão reconhece um papel da alma dos profetas na ocorrência dos milagres
Deus, exaltado seja, também afirma: "E não é dado a nenhum mensageiro trazer qualquer sinal, senão com a permissão de Deus. E, quando chega a ordem de Deus, tudo é decidido com justiça, e os que propagavam a falsidade são então derrotados." (Al-Mu’min, 78)
Este versículo evidencia que a manifestação de qualquer sinal miraculoso por parte dos mensageiros está subordinada à permissão divina. Isso indica que a realização de milagres pelos profetas está vinculada a um princípio ativo existente em suas almas nobres, cuja eficácia, no entanto, depende do consentimento de Deus — como já foi abordado na seção anterior.
De modo semelhante, o versículo que diz: "E seguiram o que os demônios contavam no reinado de Salomão. Salomão não foi incrédulo, mas os demônios, [foram incrédulos] que foram ensinando às pessoas a feitiçaria. E [acerca do] que foi revelado aos dois anjos em Babel, Hārūt e Mārūt eles não ensinavam a ninguém sem antes dizer: 'Somos apenas uma provação, não sejas incrédulo.' E aprendiam com eles o que causava separação entre o homem e sua esposa. Mas eles não prejudicavam ninguém com isso, a não ser com a permissão de Deus." (Al-Baqarah, 102)
Este versículo, ao mesmo tempo que reconhece a eficácia do feitiço em certo grau, também o associa — assim como os milagres — a um princípio psíquico presente no feiticeiro, cuja atuação também depende da permissão divina. [Portanto, são mencionadas duas ações extraordinárias – o milagre e o feitiço –, as quais mantêm uma relação essencial com a alma de seus agentes: no primeiro caso, um profeta, e no segundo, um feiticeiro.]
De forma geral, todos os fenômenos extraordinários que rompem o curso habitual da natureza — quer sejam chamados de milagres, feitiços, ou mesmo dons dos santos e outras capacidades adquiridas por meio de exercícios espirituais e ascetismo — estão fundamentados em princípios psíquicos e em disposições volitivas, conforme apontado pelo discurso divino. No entanto, os mesmos discursos corânicos revelam que o princípio existente nos profetas, mensageiros e crentes é superior e dominante sobre qualquer outra causa, em qualquer circunstância.
Deus diz: "E, de fato, já foi proferida a Nossa palavra aos Nossos servos mensageiros: certamente serão vitoriosos, e que o Nosso exército será o vencedor." (As-Sāffāt, 171–173)
Também diz: "Deus decretou: Eu e Meus mensageiros seremos vitoriosos." (Al-Mujādilah, 21)
E ainda: "Certamente socorremos Nossos mensageiros e os que creram, na vida terrena e no Dia em que as testemunhas se levantarem." (Al-Mu’min, 51)
Tais versículos são absolutos, não sujeitos a restrições.
Com base nisso, pode-se concluir que esse princípio vitorioso existente nos profetas e crentes é uma realidade transcendente, situada além da natureza e da matéria.
Com efeito, os fenômenos materiais são limitados e delimitados, sendo superados por aquilo que os transcende em grau e poder quando se encontram em conflito.
Assim mesmo, as realidades imateriais, embora também determinadas em certo sentido, não entram em conflito umas com as outras, exceto quando possuem alguma forma de relação com a matéria. Assim, quando esse princípio psíquico imaterial, [a alma do profeta] fortalecido pela vontade de Deus, entra em confronto com um impedimento material, ele recebe de Deus um reforço causal que o torna superior a qualquer obstáculo material que poderia se opor a ele; (compreenda bem este ponto).
5 – O Alcorão atribui os fenômenos extraordinários tanto à influência das almas quanto à ordem de Deus, exaltado seja.
A sentença final do versículo anterior — “Quando, porém, chegar a ordem de Deus, será decidido com justiça” (Al-Mu’min, 78) — revela que a eficácia do princípio causal [a alma do profeta] está subordinada a uma ordem divina que acompanha a permissão exigida d'Ele. Em outras palavras, ainda que haja uma causa predisposta a produzir certo efeito, sua realização efetiva somente ocorre quando essa causa se harmoniza com a permissão de Deus. Trata-se, portanto, de uma causalidade condicionada à soberania da vontade divina.
[Aqui, o eminente exegeta, contínua explicando a 'ordem divina'.]
Essa "ordem", é definida no versículo: “Sua ordem, quando quer algo, é apenas dizer-lhe: ‘Seja!’, e ele é” (Yā-Sīn, 82), interpretada como o ato divino de criação — a palavra criadora “Seja”. Também se afirma: “Esta é uma lembrança: quem quiser, que tome um caminho para seu Senhor. Mas não quereis a menos que Deus queira” (Al-Insān, 29-30), e: “Isso não é senão um lembrete para os mundos, para aqueles de vós que quiserem seguir o caminho reto. Mas não quereis a menos que Deus, o Senhor dos mundos, queira” (At-Takwīr, 27–29).
Esses versículos demonstram que, embora os atos voluntários do ser humano estejam sob sua própria escolha, a própria vontade e escolha não são autônomas, mas dependem da vontade de Deus.
[Alguns entenderam estes versículos numa leitura errada o que levou o exegeta a notar:] Essas passagens não significam que tudo o que o ser humano deseja é desejado por Deus —, pois isso constituiria um erro grave e implicaria que a ação humana pudesse contrariar a vontade divina, caso a vontade do próprio ser humano não se realizasse. [A vontade divina não está subordinada à vontade humana; mas sim, é a vontade do ser humano que se submete à vontade de Deus, o Altíssimo]. Isso contradiz diversos outros versículos, como: “Se quiséssemos, teríamos dado a cada alma sua orientação” (As-Sajda, 13), e “Se teu Senhor quisesse, todos os que estão na terra creriam” (Yūnus, 99), [Os quais demonstram que, caso Deus quisesse, Sua vontade se concretizaria, levando as almas humanas à fé, mesmo que elas não o desejassem.]
Portanto, nossa vontade e nosso querer, quando se realizam, são efetivados pela vontade de Deus. Do mesmo modo, nossas ações são desejadas por Ele por meio de nossa própria vontade — por via intermediária. Enfim, tanto a vontade quanto a ação estão, subordinadas à ordem divina e à palavra “Seja”.
Assim, todos os fenômenos — sejam comuns ou extraordinários, e mesmo os extraordinários sejam positivos (como milagres e graças divinas) ou negativos (como feitiçaria ou adivinhação) — estão fundamentados em causas naturais. Contudo, sua realização depende da vontade divina: nada existe sem a ordem de Deus; sem que a causa coincida ou se una com a ordem divina.
Embora todas as coisas estejam, de forma geral, igualmente vinculadas à ordem divina — de modo que, se houver permissão e ordem, elas ocorrem; caso contrário, não —, em certos casos, a vontade de Deus se manifesta de maneira especial, como os milagres dos profetas ou aquilo que um servo Lhe pede por meio da súplica. Isso é indicado por versículos como: “Deus decretou: certamente Eu e Meus mensageiros seremos vitoriosos” (Al-Mujādilah, 21), e “Respondo ao chamado de quem Me invoca” (Al-Baqarah, 186), entre outros já mencionados anteriormente.
6. O Alcorão atribui o milagre a uma causa invencível
[A seguir, serão esclarecidas as semelhanças e diferenças entre os eventos ordinários e os fenômenos sobrenaturais, sejam estes de natureza benigna ou maligna. Em seguida, será abordada a distinção entre os eventos extraordinários benignos e o milagre, considerado em seu sentido específico.]
Com base nos capítulos anteriores deste estudo, fica claro que o milagre, assim como os demais fenômenos extraordinários, tal como os eventos comuns não se dissocia de uma causa natural. E todos possuem causas ocultas verdadeiras no Interior. A diferença, contudo, é que:
Os acontecimentos comuns estão sempre associados a causas aparentes habituais, as quais geralmente são acompanhadas pelas causas verdadeiras naturais, juntamente com a vontade e a ordem divinas.
Já os fenômenos extraordinários, sejam negativos — tais como a magia e a adivinhação —, ou positivos como os milagres se fundamentam em causas naturais que fogem ao curso habitual, acompanhados com as causas reais interiores, juntamente com a vontade divinas.
Quanto à distinção entre fenômenos sobrenaturais positivos — sejam eles milagres ou outros sinais divinos autênticos, como o atendimento às súplicas dos devotos por Deus —, estes diferenciam-se essencialmente de quaisquer outros eventos, ordinários ou extraordinários, por uma característica decisiva: suas causas são, por natureza, invencíveis, enquanto as demais estão sujeitas à anulação ou subjugação.
O milagre, por sua vez, ainda, distingue-se pelo fato de estar ligado a um desafio que serve como prova da veracidade da profecia, da missão e do chamado a Deus, exaltado seja.
[Assim, o milagre fundamenta-se em uma causa natural, real, porém desconhecida e fora do curso habitual, sendo invencível e associado a um desafio que serve como prova da veracidade de um profeta e de sua missão divina.]
Objeção: Se se dissesse: “Nesse caso, se alguém conseguisse identificar e compreender a causa natural por trás do milagre, este se tornaria algo possível de ser realizado por qualquer pessoa, não apenas por um profeta. Assim, a diferença entre milagre e fenômeno ordinário seria apenas relativa, dependendo do conhecimento que se tem da causa envolvida. Um evento poderia, então, ser considerado milagroso por uns e não por outros — por exemplo, entre os ignorantes e os cientistas — ou em uma época e não em outra, como no caso da era científica. Portanto, se a investigação científica viesse a descobrir as causas naturais últimas, o milagre perderia seu valor como sinal do verdadeiro, e deixaria de ser prova de algo. A conclusão seria que o milagre só tem força probatória para quem ignora sua causa, não sendo, portanto, uma prova objetiva em si.”
A isso respondemos: de forma alguma. O milagre não é considerado milagre por estar fundado numa causa natural oculta, de modo que deixaria de sê-lo com o desaparecimento da ignorância, nem tampouco por estar simplesmente ligado a uma causa fora do curso natural dos acontecimentos. O milagre é, sim, um milagre porque está associado a um fator extraordinário cuja causa jamais é vencida, uma causa absolutamente dominante e eficaz. Isso é análogo ao caso de uma cura concedida como atendimento a uma súplica — que é uma forma de “ação extraordinária” (dádiva ou graça espiritual) —, cuja eficácia repousa em uma causa que não pode ser derrotada. Se a cura ocorresse apenas por via medicamentosa, seria então um evento natural, sujeito à possibilidade de sua causa ser vencida ou neutralizada por outra mais forte. A diferença essencial, portanto, está no grau absoluto de eficácia da causa, que, no caso do milagre, é vinculada diretamente à vontade divina e está acima de qualquer outra influência.
7. O Alcorão considera o milagre um critério de veracidade profética, não apenas um recurso persuasivo
Surge aqui uma questão importante: qual é exatamente a relação entre o milagre e a veracidade da pretensão profética? Pois a razão, não vê uma conexão necessária entre a autenticidade da missão de um profeta — isto é, seu chamado para Deus, exaltado seja — e a ocorrência de um evento extraordinário realizado por ele. Ainda assim, o que se depreende do Alcorão é a confirmação dessa relação, tal como é narrado em diversas histórias de profetas como Hūd, Ṣāliḥ, Moisés, Jesus e Muḥammad (que a paz esteja com todos eles). Segundo relata do Alcorão, esses profetas, ao anunciarem sua missão, foram questionados por seus povos quanto a um sinal que atestasse a veracidade de sua mensagem; em resposta, apresentaram os sinais solicitados.
Em alguns casos, o milagre foi concedido ao profeta antes mesmo de qualquer demanda por parte do povo, como se vê, por exemplo, no caso de Moisés e Aarão, quando Deus disse: “Vai, tu e teu irmão, com os Meus sinais; e não cesseis de Me lembrar” (Tā-Hā 20:42). O mesmo se observa com Jesus, a quem Deus enviou com o seguinte anúncio: “[E foi enviado] como mensageiro aos filhos de Israel: ‘Em verdade, vim a vós com um sinal de vosso Senhor: moldarei para vós, do barro, a forma de um pássaro; então, soprando nela, ela se tornará um pássaro, com a permissão de Deus. E curarei os cegos de nascença e os leprosos, e darei vida aos mortos, com a permissão de Deus; e vos informarei do que comeis e do que armazenais em vossas casas. Nisso há, com efeito, um sinal para vós, se sois crentes’” (Āl ʿImrān 3:49). De maneira análoga, o Alcorão foi concedido como milagre ao Profeta Muḥammad (S.A.A.S.).
Em suma, a razão pura não vê uma implicação lógica necessária entre as verdades fundamentais que os profetas trazem — como o conhecimento sobre Deus e a vida após a morte — e a ocorrência de fenômenos que rompem com o curso natural das coisas.
Além disso, os argumentos racionais e luminosos que fundamentam essas verdades básicas do monoteísmo e da escatologia são, por si sós, suficientes para satisfazer qualquer pessoa esclarecida. Por isso, costuma-se dizer que os milagres foram dirigidos sobretudo ao convencimento das massas, cujas capacidades intelectuais muitas vezes são insuficientes para alcançar as verdades mais sutis por meio do raciocínio. Já os mais instruídos não necessitam de milagres para crer.
A resposta: os profetas não recorreram aos milagres para demonstrar as verdades fundamentais acerca de Deus e do além — verdades que podem ser alcançadas pela razão. Para esse fim, contentaram-se com argumentos intelectuais, oferecendo provas racionais e dialogando por meio da reflexão e do raciocínio, como no versículo: “Disseram seus mensageiros: ‘Há dúvida acerca de Deus, Criador dos céus e da terra?’” (Ibrāhīm 14:10), como argumento a favor do monoteísmo; ou ainda: “Não criamos o céu e a terra e tudo o que há entre ambos em vão — isso é o que pensam os que negam a verdade. Ai dos que negam a verdade, por causa do fogo [que vão entrar]! Acaso trataremos os que creem e praticam o bem como os corruptores na terra? Ou trataremos os piedosos como os perversos?” (Ṣād 38:27–28), como argumento em defesa da ressurreição.
Os milagres, portanto, foram solicitados aos profetas — e por eles apresentados — com a finalidade de confirmar a legitimidade de sua missão e de autenticar sua pretensão profética.
Os profetas afirmavam ter sido enviados por Deus por meio da revelação, quer por comunicação direta com Deus, quer por meio da descida de um anjo — uma experiência, em si mesma, extraordinária e fora dos padrões perceptivos ordinários sensoriais ou interiores, acessíveis à maioria das pessoas. Trata-se, portanto, de uma forma de percepção oculta ao senso comum; e, caso fosse verdadeira, constituiria uma atuação sobrenatural específica sobre as almas dos profetas. No entanto, os profetas são seres humanos como quaisquer outros em sua constituição e faculdades naturais, razão pela qual enfrentaram forte negação e severa resistência por parte de seus contemporâneos, de duas formas principais:
Primeiro, houve aqueles que tentaram refutar suas alegações por meio de argumentos racionais. O Alcorão relata, por exemplo:
"Disseram: ‘Vós não sois senão seres humanos como nós; quereis afastar-nos daquilo que nossos pais adoravam’” (Ibrahim, 10).
Aqui, argumentam que, por serem humanos como os demais, e não haver nas pessoas comuns nada daquilo que os profetas afirmavam vivenciar, tais alegações seriam inválidas. Se essas experiências fossem reais, estariam disponíveis a todos ou, ao menos, possíveis a qualquer um. Em resposta, os profetas — conforme o Alcorão — diziam:
“Somos, de fato, apenas seres humanos como vós; mas Deus agracia com Sua mensagem quem Lhe apraz, dentre Seus servos” (Ibrahim, 11).
Assim, admitiam a semelhança humana, mas afirmavam que a missão profética é uma concessão especial de Deus, e que certos privilégios não negam a humanidade comum — pois as pessoas também diferem entre si em diversas outras graças. Se Deus quiser distinguir alguém, pode fazê-lo sem impedimento.
Argumento semelhante foi usado contra o Profeta Muhammad (S.A.A.S.), como mencionado:
“Por que foi ele quem recebeu a Mensagem entre nós?” (Sad, 8),
e ainda:
“Por que este Alcorão não foi revelado a um dos grandes homens de uma das duas cidades?” (Az-Zukhruf, 31).
Outro exemplo é o seguinte:
“E disseram: ‘Que espécie de mensageiro é este, que come alimentos e anda pelos mercados? Por que não lhe foi enviado um anjo como advertência junto com ele? Ou por que não lhe foi concedido um tesouro? Ou ainda, por que ele não possui um jardim de onde coma?’” (Al-Furqan, 7-8).
A lógica por trás dessa objeção é que, se o profeta alega algo extraordinário como a revelação, então ele não deveria compartilhar da condição humana comum — não deveria precisar comer, trabalhar ou andar entre os mercados. Deveria, segundo eles, estar acompanhado de um anjo, ou possuir recursos miraculosos que o elevassem acima da vida comum.
O Alcorão responde:
“Vê como propõem exemplos para ti! Desviaram-se do caminho, e não encontram saída”... “E antes de ti, não enviamos mensageiros que não comessem alimento e andassem pelos mercados. E fizemos de uns uma prova para os outros: ‘Acaso sereis perseverantes?’ Teu Senhor é Onividente” (Al-Furqan, 9 e 20).
E também:
“Se tivéssemos feito um anjo como profeta, teríamos, ainda assim, enviado sob forma humana, e teríamos causado a mesma confusão que agora têm”(Al-An’am, 9).
Outro exemplo aparece na exigência de ver anjos ou o próprio Deus:
“E disseram os que não esperam pelo Nosso encontro: ‘Por que os anjos não nos são enviados, ou por que não vemos nosso Senhor?’ Com efeito, encheram-se de arrogância e ultrapassaram todo limite” (Al-Furqan, 21).
O Alcorão responde:
“No dia em que virem os anjos, não haverá boas novas para os criminosos, e lhes dirão: É uma barreira intransponível.’” (Al-Furqan, 22).
Ou ainda:
“E disseram: ‘Ó tu a quem foi revelado o Recordo! És, com certeza, um louco. Por que não nos trazes os anjos, se és veraz?’ Não enviamos os anjos senão com a verdade, e então eles não terão mais tempo” (Al-Hijr, 6-8).
Essas últimas passagens acrescentam um novo aspecto: algumas pessoas admitiam que o Profeta trouxe algo diferente, mas afirmavam que ele era insano — que suas mensagens eram meros delírios, sem correspondência com a realidade, como também se diz em outro versículo:
“E disseram: ‘É um louco! repudiado!’” (Al-Qamar, 9).
Em suma, essas passagens ilustram a maneira como os opositores tentavam invalidar a alegação profética a partir da ideia de semelhança humana: se os profetas são como todos os outros, então não poderiam ter acesso a algo tão especial como a revelação.
Por vezes, as pessoas assumiam a postura de ceticismo, exigindo provas e evidências que confirmassem a veracidade da pretensão profética — pois, contém elementos que desafiam a compreensão comum e são estranhos às suas razões. Essa evidência solicitada é o milagre.
Explica-se: segundo o relato corânico, a reivindicação de profecia e missão divina feita por cada profeta se baseava na alegação de ter recebido revelação, seja por meio de comunicação direta com Deus, ou pela descida de um anjo. Ora, trata-se de algo que não é acessível aos sentidos, tampouco comprovável pela experiência, suscitando objeções sob dois aspectos:
(1) a ausência de evidência direta;
(2) a presença de argumentos contrários baseados no curso habitual das causas naturais.
De fato, a revelação e a fala divina, bem como as orientações espirituais e legais que dela decorrem, não são vivenciadas pelas pessoas comuns; ao contrário, o curso habitual dos eventos parece negá-las. São, portanto, fenômenos extraordinários — ou seja, violam o padrão da causalidade natural tal como o conhecemos. Assim, se o profeta for verdadeiro em sua reivindicação, deve estar em contato com uma realidade supranatural, amparado por uma força divina capaz de operar o extraordinário. Isso significa que Deus, ao atribuir a alguém a missão profética por meio da revelação, também se propõe a romper o curso natural dos eventos.
Se for esse o caso [orientar as pessoas pela revelação que uma questão sobrenatural], então, não deveria haver diferença entre os fenômenos extraordinários, logo é razoável que outro evento extraordinário — um milagre — seja produzido como prova visível da veracidade da profecia. Portanto, se Deus deseja guiar a humanidade por meio de uma via que rompe com a natureza (a revelação profética), também é coerente que autentique essa via por meio de outro sinal igualmente extraordinário: o milagre.
É por isso que, segundo o Alcorão, sempre que um mensageiro era enviado a um povo, este naturalmente — por impulso inato e instintivo — solicitava um sinal milagroso que confirmasse a autenticidade da mensagem. Essa solicitação não visava provar a veracidade dos conteúdos doutrinários em si (tais como a unicidade divina ou a ressurreição, que podem ser demonstrados racionalmente), mas sim verificar a autenticidade da missão profética.
É comparável à situação de um emissário que se apresenta a um povo afirmando ter sido enviado por seu governante com ordens específicas. Ainda que o conteúdo dessas ordens seja racional e proveitoso, o povo exigirá uma prova de que aquele emissário realmente representa o governante — seja por meio de um documento oficial assinado, um selo reconhecido ou outro sinal identificável. Isso está ilustrado nas palavras dos politeístas ao Profeta: "Até que nos faças descer um livro que possamos ler" (Al-Isra, 17:93).
Fica claro, a partir do que foi explicado, que há uma relação necessária entre a veracidade da pretensão profética e a ocorrência de um milagre, sendo este o sinal que comprova a autenticidade da missão divina — tanto para os letrados quanto para o povo comum, sem distinção em sua força probatória. Em segundo lugar, também se conclui que aquilo que o profeta experimenta por meio da revelação (waḥy) não pertence à mesma ordem dos conhecimentos adquiridos pelos sentidos ou pela razão discursiva. A revelação não é, portanto, mero pensamento correto ou reflexão bem conduzida. Essa distinção é apresentada no Alcorão com tal clareza e evidência que dificilmente alguém com mínima compreensão e senso de justiça pode dela duvidar.
Apesar disso, alguns pensadores contemporâneos se desviaram desse entendimento, procuraram reinterpretar os conhecimentos religiosos e espirituais fundamentados nos paradigmas das ciências naturais experimentais, especialmente com base na concepção de uma matéria em constante transformação e aperfeiçoamento. Para esses autores, as percepções humanas seriam simplesmente propriedades emergentes da matéria cerebral, e os ideais existenciais e valores seriam, em essência, formas de evolução material — individual ou social.
Com base nessa visão, afirmaram que a profecia nada mais seria do que um tipo de genialidade intelectual e lucidez mental, por meio da qual o indivíduo chamado profeta visaria conduzir seu povo da barbárie e do primitivismo rumo à civilização. Nesse processo, o profeta recorreria às crenças e tradições herdadas, reinterpretando-as de acordo com as necessidades de seu tempo e de sua sociedade. Assim, ele estabeleceria princípios sociais e normas práticas voltadas à melhoria da vida coletiva, complementadas por elementos devocionais destinados a preservar e cultivar as dimensões espirituais da comunidade — as quais são tidas como essenciais para a construção de uma sociedade justa e civilizada.
Essa suposição leva a várias conclusões:
- 1) Que o profeta seria apenas um pensador brilhante, empenhado na reforma do tecido social de seu povo;
- 2) Que a revelação corresponderia a pensamentos elevados que surgem em sua mente;
- 3) Que o livro sagrado nada mais seria do que a compilação dessas ideias virtuosas, livres de ilusões ou interesses pessoais;
- 4) Que os anjos mencionados pelos profetas seriam, na verdade, forças naturais que regem o mundo físico ou energias psíquicas que influenciam o desenvolvimento interior dos seres humanos; que o Espírito Santo seria uma forma superior dessas energias da alma, de onde emanariam as ideias sagradas; e que o diabo seria uma forma inferior do mesmo princípio espiritual, fonte de pensamentos negativos e ações destrutivas.
A partir dessa abordagem, esses autores reinterpretaram todas as realidades relatadas pelos profetas — como o "Livro Guardado", "Pena" o "Trono", a "Tábua", o "Juízo", o "Paraíso" e o "Inferno" — em conformidade com os pressupostos naturalistas. - 5) Que as religiões estariam subordinadas às exigências de suas épocas, transformando-se à medida que esses contextos se alteram.
- 6) Que os milagres atribuídos aos profetas e transmitidos pela tradição seriam invenções lendárias ou relatos distorcidos, criados com o propósito de fortalecer a religião, preservar a fé das massas diante das mudanças históricas, ou ainda proteger a posição dos líderes religiosos e figuras centrais das doutrinas, evitando sua queda em descrédito e obsolescência — entre outras teses que alguns formularam e outros seguiram.
Essas são, em linhas gerais, as principais ideias apresentadas. Contudo, a concepção de profecia conforme descrita por tais pensadores aproxima-se mais de uma manobra política do que de uma genuína missão divina. Uma análise aprofundada de cada um desses pontos extrapola os limites da presente discussão.
O que se pode afirmar, no entanto, é que os livros sagrados e os ensinamentos proféticos que chegaram até nós não corroboram esse tipo de interpretação, nem guardam com ela qualquer afinidade. O que motivou essa releitura foi o apego exagerado ao mundo sensível e à metodologia das ciências materiais, o que levou tais autores a rejeitarem o domínio do metafísico e a reinterpretarem as verdades espirituais de modo a reduzi-las a realidades puramente materiais e empíricas.
Esse tipo de abordagem não é inteiramente novo: trata-se, na verdade, de uma evolução de propostas anteriores. No passado, também houve quem interpretasse as verdades da fé com base exclusivamente material, ainda que reconhecendo para elas uma existência de realidades além da nossa percepção sensível — como o Trono (ʿarsh), o Pedestal (kursī), a Tábua, a Pena, os anjos e outras entidades — mesmo sem apoio direto da observação ou da experiência empírica.
Com a ampliação dos horizontes das ciências naturais e a consolidação do método experimental, os pesquisadores passaram a rejeitar a definição material anterior, ou seja: a existência de realidades materiais não acessíveis aos sentidos, reinterpretando os conceitos religiosos de modo a reduzi-los ao mundo sensível, com o intuito de tornar a religião compatível com o saber científico e protegê-la do descrédito.
Essas duas correntes, embora diferentes, compartilham equívocos semelhantes. Os teólogos antigos compreenderam corretamente o sentido das mensagens religiosas, mas interpretaram seus referentes como sendo puramente materiais, embora invisíveis — o que não corresponde à realidade. Já os pensadores modernos reinterpretaram os ensinamentos religiosos de forma a afastá-los completamente de seus sentidos originais, aplicando-os a fenômenos materiais sensíveis e verificáveis por meio da experiência — que, na verdade, não correspondem aos significados pretendidos, nem são suportados pelas expressões textuais da tradição.
A abordagem correta para interpretar as expressões dos textos religiosos consiste, primeiramente, em compreendê-las conforme os sentidos consagrados na linguagem comum e no uso linguístico corrente. Em seguida, deve-se recorrer à própria intertextualidade dos textos sagrados — isto é, ao princípio de que uma parte do discurso explica a outra —, para identificar os significados pretendidos.
Só então se deve perguntar: será que os conhecimentos científicos contemporâneos contradizem ou invalidam esses sentidos?
Se, ao longo dessa análise, for constatada alguma realidade que transcenda a matéria e suas leis, então seu exame, seja para confirmá-la ou refutá-la, deverá ser conduzido em um domínio distinto daquele próprio às ciências naturais. Pois, o estudo da natureza e de suas propriedades materiais não tem competência para afirmar ou negar o que está além da matéria. As ciências empíricas, centradas na investigação do mundo físico, não têm autoridade para emitir juízo sobre o que não pertence a esse domínio.
Caso algum cientista ou pesquisador o faça, estará extrapolando os limites legítimos de seu campo, de modo semelhante ao que ocorreria se um linguista tentasse, com base exclusivamente em sua disciplina, emitir pareceres sobre astronomia.
Retornamos à interpretação das demais passagens: